VIVER SEM GLÚTEN: DIREITO, NECESSIDADE OU MODA?

Nas últimas décadas, o glúten ganhou um papel de vilão nas conversas sobre alimentação e estilo de vida saudável. Mas, para cerca de 1% da população mundial – e milhões de brasileiros –, evitar o glúten não é uma escolha: é uma necessidade vital.

Quem não se lembra de ir ao mercado e ver as famosas frases “contém glúten” ou “não contém glúten”? Longe de ser uma questão puramente estética ou de boa forma, o glúten está presente no dia a dia do brasileiro de forma quase imperceptível.

A doença celíaca é uma condição autoimune e crônica que se manifesta em pessoas geneticamente predispostas quando ingerem alimentos com glúten, proteína presente no trigo, centeio, cevada e derivados.

Nestes casos, o sistema imunológico reage de forma anormal, danificando o intestino delgado e comprometendo a absorção de nutrientes. O resultado pode ser anemia, perda de peso, osteoporose, infertilidade e até risco aumentado de linfomas intestinais. Segundo a Federação Nacional das Associações de Celíacos do Brasil, cerca de 80% dos celíacos sofrem sem saber que estão com a doença.

A doença celíaca não é a simples “sensação de inchaço”, nem “reação digestiva leve”: é uma patologia que exige diagnóstico clínico e laboratorial preciso, acompanhamento médico e adesão rigorosa a uma dieta totalmente livre de glúten – inclusive em traços residuais, utensílios contaminados e medicamentos.

A sensibilidade dos celíacos é tão intensa que mesmo uma quantidade mínima de glúten pode desencadear uma reação. Por isso, ainda que um alimento não contenha glúten em sua composição, ele pode se tornar prejudicial se for preparado em utensílios, fornos ou superfícies que já tiveram contato com produtos que contêm glúten.

Esse fenômeno é conhecido como contaminação cruzada e basta uma pequena exposição para que o organismo do celíaco reaja, produzindo os mesmos sintomas e danos intestinais que ocorreriam com o consumo direto de alimentos com glúten.

No Brasil, a Lei 10.674/2003 foi um marco ao obrigar que todos os alimentos industrializados informem no rótulo se “contêm” ou “não contêm glúten”. Essa medida tem caráter de proteção à saúde pública e visa garantir que pessoas com doença celíaca possam consumir produtos com segurança.

Ainda assim, a legislação brasileira permanece limitada. Não há, até o momento, isenção tributária ampla para produtos sem glúten – que podem custar até três vezes mais do que os convencionais.

Projetos de Lei tramitam no Congresso Nacional buscando corrigir essa distorção, como o PL 907/2022, que reforça a obrigatoriedade de rotulagem clara e discute avanços em políticas de apoio às pessoas com DC. Alguns estados e municípios, como o Estado do Rio de Janeiro , de forma isolada, já concedem cestas básicas especiais ou criaram leis de apoio à pessoa celíaca, mas não existe uma política nacional consolidada.

Enquanto o Brasil ainda debate o tema, outros países tratam a doença celíaca como uma questão de cidadania alimentar. Na Itália, por exemplo, o sistema público de saúde fornece mensalmente um subsídio financeiro para que pessoas com a doença celíaca possam comprar alimentos sem glúten que, aliás, têm muito mais variedade do que nos mercados brasileiros.

No Canadá, os gastos adicionais com esses produtos podem ser deduzidos do imposto de renda. E na Austrália, as regras de rotulagem são tão rigorosas que apenas alimentos com “glúten não detectável” podem ostentar o selo “glúten free”.

Esses exemplos mostram que o acesso a uma dieta adequada – no caso dos celíacos, a única forma de tratamento – pode e deve ser visto como um direito, e não apenas uma questão de consumo.

Garantir isenção tributária, rotulagem clara e políticas de apoio é garantir inclusão, dignidade e saúde a uma parcela da população que vive diariamente sob restrições alimentares severas.

Buscar os próprios direitos começa com a formalização do diagnóstico. O laudo médico emitido por gastroenterologista é o documento essencial para comprovar a condição e, com ele, o celíaco pode requerer inclusão em programas públicos de saúde, acesso a cestas básicas específicas em municípios que as ofertam e cadastros estaduais de pessoas com restrições alimentares, quando disponíveis.

Além disso, o cidadão pode buscar amparo jurídico em casos de descumprimento de rotulagem adequada, discriminação alimentar em escolas, empresas ou restaurantes, ou ainda risco à saúde por falta de informação adequadas. Nessas situações, é possível acionar o PROCON, a ANVISA, o Ministério Público ou até mesmo ingressar com ação judicial individual ou coletiva, com base no Código de Defesa do Consumidor e nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proteção à saúde.

A atuação de associações como a ACELBRA (associação dos Celíacos do Brasil) também é fundamental, pois elas servem de ponte entre a sociedade civil e o poder público, promovendo conscientização e lutando pela ampliação de direitos e políticas inclusivas.

A reforma tributária é o momento ideal para lutar por direitos básicos que possam fornecer o mínimo de subsídios para os portadores da doença celíaca.

No fim das contas, o debate sobre o glúten não é sobre moda – é sobre equidade. Para quem tem doença celíaca, viver se glúten não é uma escolha: é uma condição para sobreviver com dignidade.

João Pedro Tavares Silva
OAB–SP 464.648/SP

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